segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Feliz Recomeço



















"Tem gente que machuca os outros
tem gente que não sabe amar
mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar
confie em si mesmo
quem acredita sempre alcança"(Mais uma vez, Renato Russo)


Faltam dois dias para acabar o ano da graça de 2008. Este ano é, sem dúvida, um ano que vai ficar marcado para sempre em minha vida. Falo de vida como um fenômeno longo e passivo de gestão, mas a gente sabe que esta pode acabar daqui a instantes. Como diz meu compositor preferido, ”tudo pode estar por um segundo”. Mas retomando a questão, 2008 ficará marcado, pelo tempo que eu viver, por uma simples questão: foi o ano em que meu inconsciente fez contato com a finitude. Não falo de qualquer finitude, falo da minha própria. Deparei-me com a morte e vi suscitar em mim todos os medos a que um ser humano está exposto quando se vê diante do fim. É muito ruim a experiência de ver seus sonhos e projetos se esvaindo sem que você possa fazer algo e, pior que isso, no meu caso, encontrava-me totalmente só, o que aumentou, imensamente, o terror. A sensação de abandono que se apoderou de mim é indescritível. Num grande esforço, saí atrás de socorro. Socorrido por minhas amigas vizinhas, sobrevivi. E, para minha temporária tranqüilidade, não enfartei. Estava “apenas” vivendo um quadro de estafa e depressão. Ufa!

Por que fiz este preâmbulo? Para ressaltar o quão vulneráveis somos? Não. A verdade é que todo ser humano, quando se vê diante desta perspectiva, reascende em si os mais primitivos questionamentos: Quem sou? De onde eu vim? Que estou fazendo aqui? E, talvez, o mais aterrador: Para onde vou? Imagino que daí provém a religiosidade de cada sujeito. Favor não confundir religiosidade com religião. Religiosidade está associada a esta busca de respostas para estes aspectos cosmo-filosóficos do ser humano. O certo é que quando se toma um choque desta dimensão temos, pelo menos, duas escolhas: endurecer e sair desenfreadamente atrás do gozo físico-material ou reavivar conceitos como humildade, simplicidade e amor ao próximo. A escolha está diretamente ligada ao grau de conhecimento que temos de nós mesmos. Por pior que seja a situação, algumas escolhas sabemos não ser capazes de fazer. Em ambas as situações o elemento só se libertará da angústia se estiver inteiro na sua opção.
Estar inteiro, por seu turno, vai implicar em decidir, a partir do que entendemos por vida, o que é melhor: crer que somos animais cuja morte encerra o ciclo transformando-nos em carne podre ou que somos seres providos de espírito em constante evolução e aprendizado. Minhas atuais reflexões me levam a tender para esta segunda proposta. Penso que seria extremamente inútil, despender tanta energia para virar comida de minhocas. Não posso ainda fundamentar minha crença, mas a religiosidade em mim diz que viver é um processo. E que mesmo não estando preparado para a morte, preciso construir um aprendizado, se não para aceitá-la, pelo menos para estar mais sábio para viver um próximo ciclo.

É neste contexto que me preparo para 2009. Mais desapegado. Menos sábio e com mais perguntas do que nunca. Em 2009, necessito conhecer-me e me tornar consciente de quem sou. Quero que meus movimentos surjam sempre de dentro pra fora. Não quero modismo. Quero aprimorar a técnica de ouvir mais, consequentemente, falar menos e o essencial. Aceitar melhor minhas imperfeições e todas as dualidades do meu ser. Quero não sentir culpa. Se eu estou em fase de aprendizado, quero ter o direito de errar. Quero exercer menos controle para ter mais tempo de trocar experiências. Quero explorar meus talentos. Vivenciar encontros construtivos e estabelecer laços autênticos. Talvez compre um carro zero. Um apartamento com vista pro mar. Talvez case de novo. Talvez escreva um livro. Talvez realize aquela sonhada viagem a Paris. Mas com certeza, serei mais condescendente comigo e com o outro. Criarei menos expectativas a cerca das pessoas. Estarei com meus canais mais abertos para captar os sinais e insights que surgem a todo instante. Voltarei a ler mais. Aceitarei a chuva como aceito o sol e não deixarei que ninguém seja responsável pelo meu humor. Aproveitarei este marco cronológico para marcar um novo encontro comigo mesmo.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

"Carta Aberta ao Presidente de Cuba / de Carlos Moore"


Carta Aberta ao Presidente de Cuba

Salvador, Bahia, 17 de Dezembro de 2008


Sua Excelência General de Exército Raúl Castro Ruz Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros
Conferência de Chefes de Estado e de Governo da América Latina e do Caribe,
Costa do Sauípe, Bahia, Brasil

Senhor presidente,
Se me dirijo a V. Ex.ª por meio desta Carta Aberta é porque essa é a única forma que tenho de chegar diretamente a V. Ex.ª, e também porque quero que meus concidadãos e todos aqueles que no mundo se interessam pelos problemas vitais de nossa época, se inteirem do que aqui exponho.
Tanto V. Ex.ª, descendente de europeus nascidos na Espanha, como eu, descendente de africanos nascidos no Caribe, somos Cubanos, mas esse fato não nos confere nenhum privilégio específico como humanos, a não ser o direito de ter uma voz nos destinos do país em que nascemos. Uso desse direito sem apologia.
Sei que um mundo de divergências separam nossas respectivas concepções sobre a vida, as relações sociais, a maneira de conduzir os destinos de nosso país e, enfim, a interpretação daquelas realidades que impactam a vida cotidiana dos cubanos de maneira negativa. Mas, V. Ex.ª, como mandatário de nosso país, e eu como cidadão desse mesmo país, temos em comum o fato de que, sejam quais forem nossas divergências, compartilhamos a responsabilidade de transformar nosso presente social, assim como a responsabilidade de modelar nosso futuro coletivo como nação. Da ação ou inação de cada cubano, seja qual for sua condição social, gênero, raça, orientação sexual, ou convicção política, dependerá o porvir de todos.
Sempre apoiei e respeitei a soberania nacional e, por isso, sempre me opus a qualquer medida, seja o embargo econômico ou as ameaças contra o território nacional, que puderam colocar a independência de Cuba em perigo ou lesar os interesses de sua população. Mas também, e pelas mesmas razões, sempre advoguei pelo direito inalienável do povo de Cuba, ou de qualquer povo, a dirigir seu próprio destino mediante instituições representativas e com dirigentes que sejam eleitos em campanhas livres e verdadeiramente democráticas; isto é, em eleições onde estão colocadas diferentes idéias representadas por movimentos e partidos organizados, com plataformas políticas e propostas sociais realmente independentes e diferentes. Estimo que, só assim, pode um povo exercer seu direito de optar pelo que melhor lhe convenha. Portanto, sou inimigo de qualquer ditadura ou sistema totalitário, seja da chamada direita ou da denominada esquerda, e não compartilho da opinião de que a democracia seja um luxo reservado aos burgueses.
Não vou fazer rodeios para manifestar a V. Ex.ª minha sólida convicção de que o racismo, fenômeno que impera em nosso país e que cada vez cobra novos espaços na vida política, econômica e cultural da nação, é o maior, mais grave e mais tenaz problema que confronta a sociedade cubana.
Se deixarmos de lado os discursos grandiloquentes, mas vazios, e as declarações contundentes, mas enganadoras, sobre a suposta supressão do racismo e da discriminação racial em Cuba, aparecerá diante de nossos olhos um mundo concreto de desigualdades e iniquidades sócio-raciais que foram estruturadas por séculos e séculos de opressão racial e de ódio contra a raça negra. Esse foi o mundo que concretamente herdou a Revolução que chegou ao poder em 1959, mas que os dirigentes desta última se mostraram incapazes de interpretar corretamente, por serem homens e mulheres procedentes, como eram, das classes médias brancas que sempre dominaram o país e monopolizaram sua direção política e econômica.
A hegemonia branca, com seu concomitante racismo, é uma realidade histórica que o governo revolucionário, longe de destruir, contribuiu para solidificar e estender quando declarou a inexistência do racismo, o fim da discriminação racial e o advento de uma sociedade de “democracia pós-racial” socialista. Isso significa que tanto os dirigentes da Revolução que tantas transformações sociais benéficas trouxeram para nosso país, como o povo que lhes deu seu apoio ao processo revolucionário, eram reféns do mesmo passado brutal nascido do ventre da escravidão racial que impuseram os europeus nestas terras americanas. Desse ventre monstruoso surgiu uma sociedade racista. Por tanto, Cuba é hoje um país que fala com duas vozes totalmente distintas, uma branca e outra negra, ainda que, às vezes, essas tenham se fundido, temporariamente, em momentos específicos de nossa história comum.

Senhor presidente,
É um fato sabido que a Cuba socialista foi o único país no mundo que proclamou, publicamente, que havia eliminado o racismo e a discriminação racial, e que havia empoderado a população negra. Consequentemente, o governo revolucionário reprimiu, perseguiu e forçou ao exílio todos aqueles negros, intelectuais ou trabalhadores, que sustentaram o contrário. Para esses últimos, foram reservados os campos de trabalho forçado, as prisões, o manicômio ou o exílio. Eles foram tidos como “racistas ao contrário”, “racistas negros”, “contra-revolucionários”, “agentes do imperialismo”, e até como “instrumentos da CIA”.
Grandes pensadores negros, como o Dr. Juan René Betancourt Bencomo ou o professor Waltério Carbonell, pagaram um preço muito alto por haverem se levantado contra a doutrina racial que foi erigida em política de Estado durante cinco décadas e que consistiu em negar a existência da opressão racial e do racismo em Cuba sob a Revolução. É por essa razão que hoje os olhos do mundo se voltam cada vez mais para nossa suposta “democracia pós-racial” para saber por que o regime revolucionário destruiu aqueles que se negaram a conviver com essa Grande Mentira.
Cuba é um país onde uma revolução conseguiu derrubar os velhos privilégios de uma oligarquia republicana corrupta e submissa ao estrangeiro, mas onde, até o dia de hoje, a população de raça negra, majoritária no país, está confinada a jogar um papel de subalternidade. As honrosas exceções negras que ascendem à cúpula do poder o fazem unicamente com o beneplácito da elite dominante, predominantemente de origem européia, e confirmam assim a realidade, também dominante, baseada na subalternidade da raça negra em Cuba, depois de meio século de revolução socialista. Essa é a realidade. E negá-la seria persistir na Grande Mentira.
O racismo é a última fronteira do ódio entre humanos, precisamente porque raça é a mais profunda e duradoura linha divisória que determina quem tem acesso privilegiado e protegido aos recursos da sociedade, e a quem é vedada qualquer oportunidade de usufruto desses mesmos recursos. O racismo é uma estrutura de distribuição diferenciada, racialmente seletiva, dos recursos da sociedade e do planeta, que se perpetua através do monopólio do poder político. Portanto, trata-se de um modus operandi permanente, não de uma aberração; de uma estrutura de poder total que funciona maravilhosamente bem para garantir a permanência do domínio de uma raça especifica em detrimento das outras, e não um mero reflexo das simpatias e antipatias que surgem do jogo interpessoal.
A maioria dos dirigentes cubanos, revolucionários e marxistas, é branca num país onde a maioria da população é negra. Qual seria a razão para isso? E porque razão o racismo persiste e se expande constantemente, abarcando cada vez mais espaços da sociedade cubana, e impregnando as estruturas mentais individuais e coletivas em Cuba? O poder é branco em Cuba, e a discriminação racial contra os negros cubanos se mostra cada vez com mais força, unicamente por causa do racismo. O racismo se reforça constantemente, não somente em Cuba, mas em todos os países, precisamente pela mesma razão: porque funciona positivamente para aqueles que, em função de sua raça, se beneficiam do acesso racialmente seletivo aos recursos da sociedade. Se não fosse assim, o racismo teria desaparecido há milhares de anos, como desapareceram tantas realidades que surgiram da imaginação criativa do ser humano.

Senhor presidente,
O objetivo desta carta é contribuir com o debate que está sendo levado a cabo em nosso país sobre o rumo que haverá de tomar a nação num momento crucial de sua existência; momento que deverá enfrentar os desafios do novo milênio com políticas novas e verdadeiramente inovadoras que resolvam os problemas que atingem nossa sociedade. Com esse objetivo, quero propor a V. Ex.ª um conjunto de medidas mínimas que me parecem necessárias para começar o processo que nos leve, posteriormente, todos os cubanos anti-racistas e nacionalistas, a desafiar e superar a herança do passado. Esse passado se manifesta hoje nas desigualdades raciais que debilitam a unidade nacional, particularmente em momentos em que Cuba tem a possibilidade, pela primeira vez em cinquenta anos, de resolver seu litígio com os Estados Unidos de maneira pacífica.
Mas seria hipócrita e imoral pedir o cessar do embargo/bloqueio que os Estados Unidos injustamente impuseram a Cuba, sem que os dirigentes de Cuba se comprometam, também, a levantar o embargo/bloqueio que o regime revolucionário impôs à população majoritária do país desde o início da Revolução. Ambos os embargos/bloqueios devem ser levantados, simultaneamente, sem pré-condições de nenhum dos dois lados. E, por meio desta carta, quero contribuir para que nosso país, atualmente sob seu comando, encontre a melhor maneira de alcançar esse objetivo em meio a um consenso formado na unidade nacional. .
Concretamente, sugiro, como um primeiro passo, que seu governo tome, sem demora, as seguintes medidas:
• Estabelecimento de um estado social de direito como pré-condição do exercício democrático da cidadania cubana; prescrição de todas as práticas discriminatórias, sejam de natureza política, de gênero, de raça, de orientação sexual ou de confissão religiosa; libertação de todos os presos políticos em Cuba e dos presos de consciência.
• Extinção da proibição que foi colocada judicialmente contra as “Sociedades de Cor”, instituições históricas que formam parte do patrimônio cultural dos negros cubanos e que são indispensáveis como esferas diferenciadas de organização da raça negra em Cuba; restauração do direito de existência e de organização dessas Sociedades, conforme a existência em Cuba de organizações do mesmo tipo a favor de outras etnias (tais como, as organizações de cubanos de origem chinesa, basco, galego, hebreu, árabe); autorização de qualquer organização propriamente negra (cultural, social, desportiva, estudantil, política ou artística) cuja finalidade seja a luta contra o racismo e a discriminação racial.
• Reabilitação de todas as figuras históricas e pensadores negros proscritos e/ou silenciados ao longo da história de Cuba, antes e depois da Revolução, assim como a publicação das obras de militantes negros que lutaram pelo fim do racismo e da discriminação racial (Rafael Serra, Evaristo Estenoz, Pedro Ivonnet, Ramón Vasconcelos, Gustavo Urrutia, Juan René Betancourt Bencomo, Walterio Carbonell ….).
• Condenação oficial do genocídio perpetrado pelo Estado cubano em 1912, contra a população negra, fato que, até hoje, o Estado não reconheceu de maneira oficial; reabilitação do programa político do Partido Independente de Cor (PIC) e de seus lideres históricos (Evaristo Estenoz, Pedro Ivonnet e outros), visando o restabelecimento da memória histórica nacional.
• Autorização para a criação de um organismo nacional autônomo de Negros Cubanos, na forma de uma Fundação Nacional para Fomento do Desenvolvimento Econômico da População Negra (FUNAFEN), para atender aos graves problemas sócio-econômicos que enfrenta a população negra e com atribuições para obter fundos de caráter nacional e internacional para melhorar as condições de vida nos bairros mais pobres; criar novos programas específicos para a capacitação profissional de jovens afro-cubanos que os prepare para as demandas da economia nacional e global.
• Adoção, por parte do Estado, de novas medidas com relação às remessas que seus cidadãos recebem do exterior (e estimadas em 1.5 bilhões de dólares por ano, dos quais menos de 15% chegam às mãos da população negra); adoção de uma carga impositiva sobre essas remessas, que deveria estabelecer 10% ao invés dos 20% atuais; e o 50% deste último imposto, recolhido pelo governo, deverá ser incorporado automaticamente à FUNACEN, atendendo ao fato de que as remessas do exterior favorecem o incremento vertiginoso das desigualdades raciais em Cuba.
• Autorização para a convocação, por organizações autônomas dentro de Cuba, e sem interferência dos órgãos do poder, de um Congresso Nacional sobre o Racismo e a Discriminação Racial; autorização para que intelectuais e militantes Afro-cubanos independentes, residentes em Cuba, possam participar de uma Mesa Redonda de Nacionalistas Cubanos do interior e da Diáspora, com a finalidade de discutir estratégias de combate ao racismo em Cuba.
• Autorização para a criação de um Observatório Nacional para monitorar a situação racial em Cuba e trabalhar a favor da eliminação das práticas racialmente discriminatórias de qualquer tipo, seja no domínio público como no privado.
• Adoção de medidas e políticas concretas que dignifiquem e façam respeitar o fenótipo associado à raça negra e que é objeto em Cuba de rejeição e de ridicularização, especialmente no caso da mulher negra; projeção positiva do fenótipo do afro-cubano em todos os meios de comunicação de massa, manifestações culturais e formas de representações artísticas, com o fim de combater o escárnio racista dirigido maciçamente às características raciais da população de herança africana (nariz, lábios, cor, cabelo crespo, morfologia…).
• Criminalização formal do racismo e da discriminação racial em todas as esferas da vida nacional sem direito a fiança, conforme já existe no Brasil (Lei Caó); proposta à Assembléia Nacional de novas legislações especificamente designadas para punir qualquer tipo de manifestação de discriminação ou humilhação racial na esfera pública ou privada.
• Reconhecimento pleno da mulher negra cubana como protagonista extraordinária da dignidade nacional, mas que sofreu e continua sofrendo duplamente a discriminação; lançamento de uma campanha nacional em prol da revalorização do fenótipo específico da mulher afro-cubana; autorização para a criação de uma Organização de Mulheres Afro-cubanas, totalmente independente da Federação de Mulheres Cubanas (FMC) e com capacidade para buscar financiamento externo.
• Reconhecimento da existência de maiorias orgânicas no país, atendendo principalmente aos parâmetros de sexo e raça, que deverão refletir equitativamente em todos os órgãos de decisão política, econômica e cultural, considerando que mais de 60% da população cubana atual é de origem africana; estabelecimento de um mecanismo de representatividade progressiva que garanta a presença efetiva da população Afro-cubana em todos os níveis e em todas as instâncias do país, e que, para começar, deverá alcançar nos próximos cinco anos 35% das posições-chave do Partido, do Governo, do Parlamento, das Organizações Populares, da direção das Forças Armadas e do Ministério do Interior, dos meios de difusão de massa (em especial o cinema e a televisão), da indústria turística, e das empresas mistas criadas com capital estrangeiro.
• Reconhecimento oficial e respeito efetivo das religiões Afro-cubanas, em pé de igualdade com as demais religiões em Cuba, mediante a instauração de um mecanismo de diálogo permanente da direção política do país com as referidas religiões, como se fez com as religiões cristãs, conferindo-as, assim, o lugar que legitimamente lhe é de direito, e que impulsionaria o processo de consolidação da identidade nacional e cultural; interrupção imediata de todas as práticas oficiais ou extra-oficiais que resultem na interferência, folclorização e exploração para fins turísticos das religiões de origem africana, adotando-se medidas penais adequadas que impeçam sua discriminação, como deve ser em um estado laico.
• Imposição de lei, em todos os níveis do sistema educativo, do ensino da História da África e dos povos de origem africana nas Américas, como já fez o Brasil (Lei 10639/03); publicação das obras de referência mundial que elucidam a história da África em todos os seus aspectos, e daquelas obras que evidenciam a história do próprio racismo; desenvolvimento dos estudos e pesquisas sobre a problemática afro-cubana na história e na sociedade, a fim de fortalecer a identidade nacional e levantar a auto-estima da pessoa negra; criação de disciplinas de estudos afro-cubanos nas universidades e de centros de estudos étnico-raciais extra-muros.
• Implementação de políticas públicas de ação afirmativa, como uma estratégia global capaz de conduzir a uma equiparação sócio-econômica daqueles cidadãos que, por causa de sua origem racial, sofrem desvantagens historicamente construídas, como consequência de serem descendentes das populações africanas que foram escravizadas em Cuba, e que, por tanto, seriam uma forma concreta de reparação moral para a população negra.
• Realização de um censo nacional baseado em parâmetros científicos modernos como base para avaliar a extensão das injustiças sociais que afetam desproporcionalmente a população Afro-cubana, e atendendo ao fato de que os resultados dos censos realizados nos últimos cinquenta anos merecem total desconfiança.

Senhor presidente,
Pessoalmente, estou convencido de que V. Ex.ª tem consciência da gravidade do momento e da pouca margem de manobra que teria qualquer dirigente em sua posição. Contudo, a seu favor, acorrem certas circunstâncias próprias que devem ser aproveitadas, se o objetivo é salvar as conquistas sociais que o povo de Cuba obteve através da Revolução de 1959. Considero como algo benéfico, para V. Ex.ª e para Cuba, precisamente, o fato de que V. Ex.ª não seja um líder carismático tradicional, o que lhe permite ser, em contrapartida, um dirigente realista e pragmático, capaz de reconhecer o perigo quando o vê.
Estou convencido de que os numerosos dispositivos de inteligência que V. Ex.ª tem sob seu comando, a grande quantidade de institutos de pesquisa social que o regime revolucionário criou ao longo das décadas para analisar a realidade social e tomar o pulso da população, proporcionou suficientes dados sociológicos, empíricos e abstratos, que permite concluir que algo novo está acontecendo na consciência coletiva da população negra majoritária e que esse “algo” não poderá ser satisfeito a não ser com um empoderamento efetivo, a partir de formas de organização legitimamente populares e surgidas de baixo.
Chegou o momento de mudar drasticamente, e num tempo mais rápido possível, a situação da população negra em Cuba, atendendo tanto à urgência que sentem aqueles que nunca tiveram o poder, e aos problemas gigantescos com os quais têm de se confrontar. Mudanças profundas devem ser feitas agora, sem qualquer pretextos ou estratégia de retardos, sem demora, para modificar de maneira radical, permanente e abrangente o panorama sócio-racial da sociedade cubana. Não há tempo a perder: cada minuto de espera é uma porta aberta a situações imprevistas e difíceis de serem controladas, na medida em que apareçam.
Seria perigoso continuar a pensar que “aos negros não interessa o poder”, e continuar postergando aquelas medidas sem as quais não pode acontecer o empoderamento verdadeiro da população que é maioria em Cuba. É por isso que nas mãos de V. Ex.ª está atualmente a possibilidade de fazer uma ruptura completa com o passado e fazer o que nenhum dirigente que o precedeu se atreveu a fazer: trabalhar a favor do empoderamento efetivo daqueles que, há mais de trezentos anos, vivem em um estado permanente de Período Especial.
Falei a V. Ex.ª em meu nome, e só em meu nome. No entanto, sei que as opiniões emitidas nesta carta têm eco naquelas que cada vez mais estão sendo formuladas no país. E eu sei que V. Ex.ª sabe disso.

Com muita deferência e saudações nacionalistas,

Carlos Moore
Etnólogo e Professor de Relações Internacionais

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

American Citizen

Passados os momentos de grande euforia, mas ainda em foco, resolvo me pronunciar. O texto está na minha cabeça há quase um mês, mas não querendo parecer “do contra”, fiz opção em me manter na reserva. Diferente do Brasil, eu nunca vi uma campanha de tamanha força estratégica, bem cuidada, de centro e com vistas a agradar baianos, europeus, africanos e principalmente americanos. Não obstante ter derrotado uma fortíssima oponente (que vai ocupar cadeira no seu secretariado, ironicamente) dentro do seu próprio partido, o fenômeno esmagou as esperanças da perpetuação do estado de coisas vigentes na América. Dupla luta, dupla vitória, ambas vencidas sem knock out ,dada a grandeza dos oponentes. Dizê-lo formidável a esta altura seria redundância das grandes. Imputar-lhe competência, habilidade política e outras qualidades, desnecessário.

Sua vitória tem um valor simbólico enorme para o mundo. Para história americana um marco político que inaugura uma nova era. Mas, saturado pelas comemorações, pergunto: e daí? Esta vitória pode significar uma grande transformação no tecido social e político dos Estados Unidos, sem dúvida. E quanto a nós? O que festejamos? O que estamos comemorando? Uma vez que nós não somos o mesmo povo. Latino-americanos, africanos, árabes, palestinos, estamos num terceiro plano e nossas vicissitudes são outras. A herança deixada para o eleito não é das melhores e há tempos somos nós quem pagamos estas contas.

A ficha que me cai é feito moeda cujos dois lados são iguais. A festa em mim fluiu transitória específica (quase inconsciente) e baseada nas experiências de vida enquanto afro-descendente, mas a minha angústia antiamericana não se dissipa. Minha preocupação seria uma preocupação infundada, irracional e descontextualizada não fosse ele americano. Gostaria muito que esta mudança representasse uma mudança mundial nas relações desiguais e unilaterais desta superpotência, em crise, principalmente com os países pobres e em desenvolvimento, mas a ver pelo discurso da vitória, continuaremos a assistir um governo que governa pela hegemonia, pela megalomania em busca de solver seus problemas a custa e pouco importando o desequilíbrio mundial. Oxalá, esteja eu enganado.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

LÁBIOS QUE NÃO BEIJEI...


"Faz um tempão
Que eu não dou asas
A minha emoção
Passear, distrair
E me achar lá no fundo de ti..." (Que nem maré, Jorge Vercilo)

Várias vezes, a desejei e adorei estar na presença dela. Muito embora não soubesse ao certo. Não era um desejo carnal. Amor platônico. Um sentimento revestido de fantasia e idealizações. Sentar ao seu lado. Sentir seu cheiro. Receber um aceno. Um olhar mais terno. Andar ao seu lado ou em sua direção. Exercer possibilidades. A vida me ofereceu múltiplas.
Ela há tempos, está sempre ao lado de outro. Queria ser amado por ela, mas no fundo acho que nunca me encorajei em seduzi-la. Persegui-la. Sei lá. Nunca tive o amadurecimento de revelar-me. E conseqüentemente, nunca tive a experiência de desfrutar do convívio íntimo dela. No fundo, acho até que ela sabe dos meus desejos. Conhece bem meus meio-discursos. Flerta. E deve se rir de mim enquanto sigo envelhecendo e ela cada dia mais bela.
Todos pensam que a tive ou a tenho a todo tempo, não afirmo, nem nego. Sigo oscilando entre a dúvida e o remorso. Será pecado desejá-la tanto? Querer tê-la minha? Querer seguir com ela lado a lado pela vida? Que faria se ela se me apresentasse agora e dissesse eu sou sua? Que caminhos eu iria inventar? Que faria eu com tamanha disponibilidade? Acho que me aprisionaria de tão intensamente liberto. Pouco inventivo que sou, não saberia lidar com sua majestosidade. Ainda mais, que não sou afeito a renúncias e me acho tão cartesiano.
Sendo muito sincero, eu nem a conheço direito, não sei muito dela. Não conheço seus humores, nem anseios, nem nada. Sou livre para amá-la, desejá-la, mas sequer sei lidar com o que ela representa. Se a escolho, acho que é pela remota chance de que tenho de tomá-la nos meus braços rígidos. Escolhê-la é em si a grande desculpa para não atingi-la. É escolher não fazer escolha alguma. Até porque, escolhê-la é buscar encontrá-la. E isto desorienta. É neste ponto que no fundo, prefiro-me sentir amado por quem me oferece algo suficientemente bom, que nem sempre é amor, mas que me faz sentir “liberto e seguro”. Por isso, vez por outra, volto ao certo, quando me defronto com a multiplicidade de alternativas que é lidar com ela. Ela me assusta. Atormenta na falta e na presença. É tão tênue e emancipada que, talvez intimamente, nem eu nem ninguém esteja pronto para cortejá-la. Moldá-la. Inventá-la...

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

REFLEXÃO ACERCA DO DIA DO PROFESSOR


Se partirmos do pressuposto de que “importante” significa algo que tem caráter essencial e entender “prioritário” como tudo que é muito importante, concluiremos que este segundo vocábulo se aplica como uma luva à questão da educação no nosso país. Sendo prioritária, deveria estar à frente de diversas outras questões que nos saltam aos olhos a toda hora que assistimos um noticiário ou abrimos uma página na internet. Esta é uma questão maior que a política de salvamento de bancos falidos a que assistimos alguns anos atrás, maiores que a da comercialização, ou não, de armas de fogo e munição e ouso afirmar que de relevância superior ao problema do tráfico de drogas, essa mazela social que degenera a sociedade brasileira. Afinal, não precisa ser um cientista social para depreender que, afora as questões morais e político-partidárias, a maioria das nossas mazelas tem origem no esfacelamento da educação.
Ao longo destes anos, ouviu-se uma gama de críticas ao sistema educacional, muitas delas respaldadas em índices verídicos e sofríveis, o que tem suscitado, em contrapartida, uma avalanche de políticas que tentam curar o sintoma estatístico, sem erradicar a causa. Claro que é importante a distribuição gratuita de livros, projetos da natureza do Bolsa Escola, políticas reparadoras, mas é prioritário se estabelecer uma política de longo prazo, assegurando o desenvolvimento educacional e que seja, sobretudo, desvinculada do caráter assistencialista que estas ações tendem a adotar a despeito de educação ser um direito constituído.
É prioritário rever a situação do alfabetizado, que hoje, na prática, retrata aquele que aprendeu o alfabeto e sabe assinar o nome, fazendo com que tenhamos um número significativo de cidadãos que não possuem o domínio pleno da leitura e da escrita e, consequentemente, não estão preparados para competir no mercado de trabalho.
Resgatar a qualidade da escola pública fundamental, uma vez que ela é o alicerce para construção do conhecimento posterior. Assim sendo, mais que estimular a freqüência ou minimizar a repetência e evasão, precisamos rever forma e conteúdos de modo que o educando, estimulado, passe pela escola, aprenda e acumule conhecimentos essenciais ao seu desenvolvimento sócio-cultural.
Resgate igualmente prioritário na consecução de resultados, em qualquer política que se venha a adotar, é o do papel do professor. Não existe tecnologia, sistema de informação que exclua do processo educacional este profissional, esteja ele na sala de aula, esteja no vídeo de um aparelho de televisão, esteja por detrás de um computador. Equipamentos não se vinculam afetivamente às pessoas, não cuidam, sequer adotam papéis de relevância emocional na vida dos estudantes. Este papel cabe ao docente. Não se está aqui minimizando o papel de facilitador e estimulador do conhecimento, mas acima de tudo valorizando aquilo que tem de mais humano na relação professor-aluno: os laços de afeto. Educar é um gesto essencialmente humano, não podemos perder isso de vista. Pelo contrário, precisamos reconsiderar isto definitivamente e trazer o professor para o lugar de relevância que ele exerce neste processo. Mais que uma política de salários decentes, urge-se que recuperemos a auto-estima dessa categoria, que lhe aparelhemos continuadamente e reconheçamos sua participação decisiva no futuro.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Procurando bem. Todo mundo tem...


De repente me vem um verso da letra de Chico, musicada por Edu Lobo do qual vou fazer mal uso, mas não me sobrou alternativa.
“Não livra ninguém” somos uma sociedade cretina.
É comovente a alegria do palhaço a serviço do jogo imundo da política partidária. A escola esfacelada. O bispo enriquecido. O herdeiro do império tirânico. Um César que nunca reinou. Todos rendidos à popularidade da bailarina sem postura. Chicotadas de cabelo, gritinhos histéricos, rebolados. Quem manipula quem? Quem é marionete de quem?
Treze mil votos. Pensemos: que eleitorado compõe esta massa? Respondo: pessoas que não possuem informação e que não buscam obtê-la. Massa sem consciencia crítica ou política, movida por um comportamento moldado e induzido.
Antevejo um desfecho triste: legislar, fiscalizar, apresentar projetos de lei, participar de comissões, aprovar, rejeitar, emendar orçamento. Logo, logo alguém estará ditando a dança da eleita. O que dizer. O que fazer. Que ritmo dançar. Quais bandeiras defender.
Que pelo menos não matem o sonho de Alecsandro de levar uma vida alegre, despojada, dançante e feminina. Que deixem-na exercer seu carisma, isto já demonstrou que tem, que a tratem e a ensinem a exercer este papel com a dignidade que nem mesmo os mais escolarizados tem demonstrado ao longo dos anos. Muito pelo contrário. Em sua maioria, quanto mais esclarecidos menos possuem qualquer exemplo a dar, maus políticos, interesseiros, ganaciosos, ótimos negociadores de interesses pessoais e péssimos legisladores.
Fato consumado, só nos resta esperar que o pior não aconteça, que esta brincadeira de mau gosto converta-se numa surpresa onde a eleita consiga se engajar na luta pelas prioridades básicas e interessses coletivos desta cidade onde a população menos favorecida só goza de um único direito: o de rebolar.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

HOJE, EU QUERO ESTAR SÓ


“Mudaram as estações
Nada mudou
Mas eu sei que
Alguma coisa aconteceu
Está tudo assim
Tão diferente...”
(Por enquanto, Renato Russo)










Porque eu nunca vi tanta dor naqueles olhos e, sobretudo, amor. Vinte oito anos. A vã poesia não explica porque depois de tantos outonos. Fico atônito. Quem lhes autorizou?
Ainda os vejo, janeiros, juntos, exemplificando aquilo que eu nunca aprendi: acasalar. Perco o sono. Expio. A vida não sabe mais de nada. A dor nos olhos dela não me sai do estômago, aonde o frio chegou junto com a notícia. Eu os amo tanto. Quisera que meus olhos não estivessem lá para ouvi-la. Quisera inventar um jeito de remendar o beijo primeiro lá nos catorze anos, onde residia a felicidade do encontro. Noites intermináveis. Sexo vida amor foda. Vínculos profundos... E um estado de pertencimento... Cheguei muito depois, mas eu sei o que se desfrutou...
Eu a olho nos olhos. Ela é tão dele. Deve conhecê-lo em cada dobra, cara ruga, cada suspiro, as linhas da palma da mão, o gosto advindo da sua ressaca. Mulher, puta, amiga de infância, ela mesma. Libertação? Os olhos marejam e eu confundo dor e geografia. Que abismo é esse? Por que se rompe o istmo que liga estas duas grandes porções de terra, água, fogo e ar, onde eu me confino como se a buscar segurança?
Posso imaginá-la, pensamento solto: nascimentos. Nome, batismo, cocô, escola, útero, dentição, sabonete, menstruação, virgindade. Tudo ao mesmo tempo e sem qualquer ordem.
Sofro de assalto com a notícia e sofreria mesmo se esta fosse boa pra eles. Pra mim será sempre má. Tem coisas que não cabem depois de tantas estações de trem e colheitas.
Os olhos dela... Fingem conter um equilíbrio delicado e generoso, mas que se desfaz, se desmente e desmancha na voz embargada, no rubor da face, enquanto persegue o argumento perfeito... Que eu rejeito e não quero que exista.
Desculpem-me a devoção ignorante de quem ainda está na total falta de luz, mas se eu fosse vocês recolheria os cacos esparramados e reconstituiria o vaso da existência. Ferimentos quando não matam, cicatrizam.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

CABE UM TANTO (comentário a respeito do CD Responde à roda da cantora Cláudia Cunha)



A capa é feia. Dá impressão de ter sido concebida às pressas. Se não reflete a beleza quase translúcida da cantora (reencarnação de musa simbolista vivendo em pleno século XXI), menos ainda o que está por trás da embalagem. Talvez seja para contrabalançar trabalho tão asséptico: musica limpa, voz de veludo, sonoridade, arranjos precisos...
Já saí do lançamento ouvindo meu CD, devidamente autografado, e estou há quase um mês escutando e com vontade de escrever as minhas impressões.
Achei-o muito belo(belo não traduz o que chamo de belo)desde o começo. Simples como deve ser a arte, mas cheio de subjetividade, leveza, relevo e reentrâncias. Não se encerra em si. Não diz tudo. Deixa o espaço para a gente interagir, descobrir, divisar; responder e até rodar.
Um disco "novo" que remete a reminiscências e à melancolia de não ter pertencido à geração de 20 ou de 50.
Continuarei ouvindo décadas afora com a sensação de um trabalho extemporâneo. Não tem cara de 2008. Não tem cara de música de tocar no rádio. Tem cara de música de cabeceira (de cama e/ou de rio). De boêmia, no sentido real, tem algo de embriaguez, mas tem muito da busca pelo lapso, pelo imprevisto, pelo súbito de vida que cremos não se perdeu. Acho até que tem um gosto meio azul, mas respeito a opinião de quem achar que tem cheiro de cavalo marinho.
Porque me ficou uma única certeza: Alice não gira só...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Fiz Uma Viagem

Texto dedicado a minha "filha/sobrinha" Jéssica de Andrade.

Cai em mim uma suposição que aos olhos de muitos pode parecer absurda, meio absurda: será que suas cinzas não deveriam ter sido jogadas no mar da Bahia? Em Itapoã para ser mais preciso. Nenhum lugar te fora tão íntimo. Nada lhe fora mais concernente. Suas canções sinestésicas desaguavam nele: aquele mar. Aquela atmosfera. O teu habitat. A tua herança para o mundo. Sobre ele que se erigia a sua melhor porção. Assim como erigiu no imaginário do mundo, o mundo que a Bahia é. Acontece que você era baiano, Ioiô. E tudo dava a crer que sua jangada ainda ia nos voltar num raiar de sol sublime e singelo. Não era aqui a terra da felicidade? Tinhas prometido à “morena do mar” que ias voltar e num revide à “morena frajola” que um beijo lhe negou, ficaste por lá.
A noite que você não veio foi de tristeza pra nós. Acenamos-te nossos lenços de longe, num adeus meio sem graça. Você bem sabe, quanto mais distante mais triste o lamento.
Quase que a gente se zanga contigo, mas a gente te sabe perdoar. Ninguém foi com tu. Ninguém descreveu sua terra como você. Isso consolou nosso coração. Nunca teremos saudade igual. Aguda como sua musicalidade.Inquestionável quanto sua importância. Infinda...
Por certo, já encontraste sua cama macia de alecrim, mas você estará aqui, vivo, no ronco das ondas do mar.. A gente só queria te dizer mais uma coisa. Todo mundo gosta de abará. Todo mundo gosta de acarajé. Mas todo mundo gostava mesmo é de ti, Ioiô. Unanimemente, Ioiô... Unanimemente...

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

ENTENDENDO A AUTOGESTÃO


De todos os princípios que norteiam e legitimam o cooperativismo, talvez a autogestão – participação efetiva dos cooperados no estabelecimento dos rumos do empreendimento – seja o principal diferencial deste modelo de organização. Parece-nos claro que todos ganham num modelo socialmente justo e solidário, onde as diretrizes, responsabilidades e políticas são definidas coletivamente e compartilhadas. Por que então boa parte dos associados se omite de tomar nas mãos o destino de seu próprio negócio?
É muito comum que as pessoas aleguem desconhecimento e falta de domínio gerencial para tomadas de decisões, mas o que se observa neste modelo de organização é um excesso de comodismo e algo que é mais crônico: o medo de correr risco e do fracasso.
Para aqueles que alegam desconhecimento, digo que na verdade, existe um meio muito simples de conhecer: aproximando-se. Estando aberto a aprender com aqueles que já estão envolvidos e exercendo a capacidade de se associar na busca de soluções que representem o melhor para a coletividade. Ressalte-se que em qualquer empreendimento coletivo, valores como ética, solidariedade e cooperação devem predominar sobre o individualismo e a competição sem limites, de modo que possamos ter maturidade para compreender que o bem do grupo está acima do de cada indivíduo que o compõe.
Já o medo de correr risco passa por uma questão mais complexa, pois demanda por uma mudança cultural. É muito difícil para alguém que foi talhado para ser empregado adquirir uma visão empreendedora. Para um empreendedor, correr risco é algo inerente. Ele vai atrás da auto-realização, toma pra si responsabilidades e transforma idéias em ação. Ele sabe que perder faz parte do jogo. São pessoas que possuem verdadeira ojeriza de subordinação.
O fato é que, apesar de não caber, ainda existem nas cooperativas, pessoas com a visão de empregado, que estão para cumprir sua jornada e receber seu “salário” no final do mês. Este perfil de cooperado provoca atrofia e fragiliza qualquer organização. Para estes, por maior que seja a visibilidade das ações, por mais que tenham acesso às informações e liberdade para agir, jamais darão sua contribuição efetiva, muito embora se beneficiem dos resultados, pois não se tornaram conscientes de que a cooperativa lhes pertence e de que a eles compete administrá-la.
É somente a partir da participação de todos que se promove o estabelecimento de um ambiente democrático em que se pode construir a autogestão. Participar e responsabilizar-se solidariamente por estabelecer políticas e tomadas de decisões é um direito e ao mesmo tempo um dever de todos.

sábado, 9 de agosto de 2008

SOBRE A PATERNIDADE

"(...)Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar"
O ESPELHO (Paulo César Pinheiro / João Nogueira)


No fundo, no fundo, a gente gosta de ser ídolo sim, gosta de ser o herói, o super-homem dos nossos filhos. E eu acho que em alguma instância somos mesmo.
Ao lhes darmos a vida, estamos selando o início de uma missão que tem por princípio torná-los seres de bem. Torná-los pessoas justas, compassivas, de valores morais elevados e humanas. Este é o grande desafio do ser pai.
Ser Pai é ser exemplo, falar e transmitir ensinamentos através das atitudes e gestos mais do que com palavras. Modelo para todas as horas, do dia e da noite, de cidadania, de liderança firme e sadia.
Ser pai é dar limites, mais que encher os filhos de bens materiais é fazê-los valorizar as oportunidades, dizer não com o mesmo amor com que diz sim e suportá-lo.
Ser pai é nunca ser pessimista, semear esperança no mundo mesmo nas ocasiões adversas, ter coragem e persistência.
Ser pai é fazer história, ser reverenciado pelo servir, pela participação, pelo que representa a despeito de ser um pouco gordo, alto, baixo, meio careca ou míope. Pai deixa saudade e se faz presente mesmo ausente.
Ser pai é uma grande aventura. Um dos maiores empreendimentos que pode o homem fazer. Demanda investimento. Demanda energia e responsabilidade, mas nos reserva muita alegria e prazer.
Se pudesse dar um conselho aos meus amigos, lhes diria: experimentem ser pai.
Porque ser pai, mais que uma experiência enriquecedora, nos diferencia e nos faz sentir homens no sentido pleno. Heróis sim, por que não?

terça-feira, 15 de julho de 2008

VIAS OBLÍQUAS


... E depois, eu já não me consentia o “direito” de reivindicar(menos ainda em acreditar): tardes mais azuis, gestos menos amarelos e verde transparência. Tudo ilusão. Não que eu ache viver uma coisa tão volátil e tão extrema quanto quer o veloz computador (A vida é mais do que se conta. É uma questão de “oportunidade”). No mais, só habeas corpus para hábeis senhores, tornando obsceno o “entre e sai” que seria próprio ao movimento do fazer amor.
Sacudido destes dias, para muitos de crença escorrendo pelos dedos quando nem bem o galo tinha cantado, e se quer estabelecera-se os limites, conceitos e diretrizes para vivê-la: o pássaro voou.
Pássaros de porte ainda hoje voam mais rápidos, muito embora se meça o tempo em horas, minutos e segundos como antigamente. Tudo parece mais alto e solúvel quando convém. Tornou-se impossível voltar atrás da tentativa do "feliz" voltar atrás.
A sensação que pairou é de que a cega enxerga sim, ainda que pelos olhos do guia, aquele da espada brilhante, e está tudo certo. A túnica já não lhe cobre os belos seios (talvez de silicone). Quem se importa? Sua boca, quase que politicamente correta, de tanto deleite parece esboçar sorriso. Nenhum siso. Qual cura, o quê?
Mordesse meu próprio braço e bem saberia onde ia dar. Não vou fazê-lo porque a estrada, interditada para alguns, se encontra perfeitamente trafegável e leva para um abismo sem barreiras de zelo ou de reverberações.
E depois, sábado é daqui a pouco e, enquanto os omissos assistem ao certame, quero estar na singeleza da minha casa para assistir Corinthians e Bahia.No bolso resta a esperança de que o Bahia ganhe a peleja e Xangô, orixá do conhecimento e da JUSTIÇA, caia sobre a cabeça dos homens.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Um mês sem Jamelão


















Nesta segunda, 14 de julho, o Brasil completa um mês da morte de José Bispo Clementino dos Santos, por poucos assim conhecido, mas inesquecível como Jamelão. Quem gosta de música, no mínimo, já ouviu este nome e sabe de quem estou falando.
Jamelão parecia ter um temperamento forte e explosivo como sua voz. A última imagem marcante que tenho dele é muita curiosa. Nosso intérprete flagrado, acidentalmente, fazendo um gesto obsceno com o dedo no momento em que a TV Globo ia entrevistá-lo naquele que seria seu último desfile pela sua escola de coração. Era a atitude irreverente de uma figura folclórica sobre a qual suscitam muitas histórias e, segundo a mídia, detentor de um grande mau humor.
O registro que faço dele é do sujeito que emprestava emoção às canções como ninguém e que tinha um charme inigualável na leitura de sambas-enredo que o qualificaram como intérprete sim, jamais puxador. Os outros vieram depois...
Jamelão foi enterrado com muito samba, muitos depoimentos de pessoas famosas e relativa cobertura, mas rendidas as homenagens, fico sempre com a sensação de que fazemos pouco por estes monstros sagrados da arte que, não demora, serão esquecidos pela mídia.
Jamelão que "pensava que seria sempre operário", na verdade o foi. Operário da arte, da boa interpretação e do domínio vocal inigualável. Ele deixa uma lacuna, a qual talvez não interesse mais a indústria fonográfica preencher, mas que no cancioneiro popular ainda e pra sempre terá seu lugar. As serestas continuarão. As serenatas. Os menestréis hão de prosseguir se inspirando naquela voz grave de pronúncia irretocável que tocava aos corações e expressava o sentimento da gente que não se vê na televisão.
Não, Jamelão. Não vamos deixar sua arte cair no esquecimento. Ela será sempre lembrada nas canções melodiosas e no lirismo das letras que você interpretava como ninguém, num tempo onde as canções faziam sentido e do qual morremos de saudades.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O paradigma de ser autônomo


Eu participo de uma cooperativa que em outubro completará 20 anos de existência e eu, que caminho há quase dezenove anos fazendo parte, trabalhando, produzindo e me sustentando a partir dela, reluto em aceitar o questionamento sobre sua viabilidade enquanto organização formada por autônomos.

Num país onde as organizações; principalmente as micro, pequenas e médias empresas; não sobrevivem aos dois anos de vida, chegar aos dezenove torna inquestionável a força deste modelo de empreendimento coletivo.

Geralmente, quando se discute questões sobre longevidade temos como senso comum que as organizações “quebram” por falta de profissionalização e instrumentos administrativos eficazes, o que em tese é a realidade. Entretanto, nas minhas andanças difundindo o cooperativismo, tenho observado que existe um elemento anterior às questões gerenciais que entendo ser o predecessor da maioria dos fracassos: o paradigma de ser autônomo.

Lembro-me perfeitamente da reação da minha família quando pedi demissão de uma empresa petroquímica onde trabalhava como celetista para aderir a esta cooperativa. Foi unânime o mal estar que tal decisão causou. Eu demorei anos para convencê-los que não era nenhuma insanidade ter autonomia.

O fato é que ser autônomo neste país parece uma anomalia. A falsa segurança que o emprego formal provoca na sociedade é algo tão forte que as escolas talham as pessoas para esta modalidade de trabalho. Conheço cidadãos de vida tão previsível e rotineira, mas que se sentem; ainda que profissionalmente infelizes; seguros por ser funcionários da empresa “X”. Foram talhados para ter um emprego e não para desenvolver trabalho. Muitos não exercitam a criatividade, não enfrentam desafios, nem sabem sequer o significado de empreender.

Certamente que não os culpo, nem os critico por isso, são oriundos de uma escola, enquanto instituição, cujo projeto pedagógico é no mínimo incoerente, pois não educa pessoas, forma verdadeiros autômatos. Não conduz o indivíduo para o prazer, o desenvolvimento de habilidades legítimas e valorização do trabalho enquanto caminho de realização com conseqüente reconhecimento e sustentabilidade. Antes, prepara para competição desenfreada, para ter um número de matrícula, uma carteira assinada e um salário muitas das vezes indigno.

Num momento em que a crise do emprego é uma realidade, principalmente para nossos jovens, onde a escassez de oportunidade fica cada dia maior, a sociedade organizada precisa descobrir que ser autônomo não só pode ser bom, mas, possivelmente, pode ser uma saída.

Cobrar da escola uma prática de ensino que leve o cidadão a pensar com autonomia, a ousar e saber reconhecer as oportunidades que surgem é o primeiro passo para quebrar este paradigma. Uma prática que leve as pessoas a pensarem, só ou coletivamente, em construir uma sociedade pautada em um novo conceito do que é trabalho.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Das manifestações juninas


Desde menino e até hoje, "burro velho", as festas juninas me encantam. Esta atmosfera de festejo que se estabelece, esta fartura que parece emergir não sei de onde, neste país de miséria, me toma de uma enorme comoção.
É muito humana a forma como as pessoas nos recepcionam em suas casas e como ficam felizes com nossa presença em qualquer região do interior do Nordeste.
Fico fascinado em ver como em meio a esta legião de corruptos que assolam o país, basta sair da metrópoles para perceber quanta gente boa, ordeira e de boa índole existe neste País. Os festejos juninos nos possibilitam isso. Conhecer gente de verdade, sem máscaras, sem discursos vazios e desprovida desta ganância da qual padece os cosmopolitas. Gente hospitaleira. Pessoas que compartilham o que tem, de forma simples e natural porque sabem que viver é simples.
Asseguro que muito "Lalau" que acumulou fortunas, nunca experimentou o prazer de um bom dedo de prosa em fim de tarde com gente de verdade, regada a um bom licor e um "mio" cozido especialmente para nos receber. Se cai aquela chuvinha e sobe a aquele cheiro de terra, então. Vixe! Gente com muita história, cultura, tradição e, sobretudo, desapego.
Esta é aura do brasileiro legítimo que sabe que viver é ser e não ter. Que não frequenta os centros acadêmicos, mas é doutor em humanidade.
Ah! Como gosto deste contato. Como é bom respirar este ar. Como é bom saber que a televisão não "emburreceu" este povo. Que bom desligar o celular e gritar: Acorda São João!