Há anos que não conseguia sentir saudades de um carnaval. Desde que me entendo por carnavalesco, só me abstive de participar do carnaval num ano em que um amigo querido, do fim da adolescência, faleceu e eu mais seis amigos pactuamos que não brincaríamos naquele ano. Fomos pra Ilha de Vera Cruz. Eu com o coração dividido entre a palavra empenhada e o desejo de brincar, lembro-me que quando não aguentei mais, os convenci a retornar e ainda aproveitei o que me foi possível daquele “último dia”. Vale lembrar que até meados dos anos 90, o carnaval acabava na terça-feira, mais tardar às seis horas da matina da quarta quando as igrejas começam a badalar os seus sinos anunciando a Quaresma e os trios da Praça Castro Alves batiam em retirada. Naquele tempo éramos todos, pelo menos os carnavalescos, católicos praticantes ou não, mas respeitávamos os ditames da igreja católica. Isto me lembrou um fato interessante da minha infância, única vez em que apanhei da minha avó materna, quando numa manhã de quarta-feira de Cinzas, eu insistia em usar uma máscara de papelão, em total desrespeito aos valores de uma avó amorosa e que me enchia de vontades, mas que não admitia que ninguém tripudiasse sua crença. Não deu outra: caí no "sarrafo".
Ao longo deste tempo, eu assisti o nascimento dos blocos afro, a decadência dos blocos de índios, o surgimento do macacão e depois do abadá, o fim da mortalha e do Bloco do Jacu, para mim a manifestação mais legítima que existiu no carnaval da minha mocidade: “Ele não tem corda por que tem coração, cabe todo mundo pra brincar no seu cordão (...)”. Ah! Jacu...
Em 1992, não havia ainda carnaval na Barra. Naquele domingo, eu e mais alguns amigos armamos uma brincadeira e ficamos subindo e descendo do Farol para o Cristo e vice-versa, cantando sambas e marchinhas antigas e arrastando o pessoal que fez a opção de não ir ao centro da cidade. Neste mesmo dia, apareceu um fusca velho com umas caixas de som em cima e uns caras com uns timbaus tocando e cantando. Como não tínhamos como competir, nós ficamos alternando, quando os caras subiam a gente descia, até que ficou insustentável e escolhemos um bar numa rua entre a Marques de Leão e Afonso Celso e ficamos brincando até cansarmos. No ano seguinte não saímos mais, pois estava instituído o carnaval da Barra. Quanto aos caras dos timbaus, já começavam a ganhar notoriedade, transformando-se num movimento musical que viria a ganhar o Brasil e posteriormente o mundo.
No meado dos anos 90, começaram os primeiros sinais de que o carnaval espontâneo não mais teria vez. Os empresários descobriram o veio comercial desta manifestação, as emissoras de televisão idem e começaram a forjar seus ícones, privilegiados e milionários (são eles que ganham muito para mandar dar a volta no trio, mandar bater palminhas, sair do chão e beijar na boca). Começava o investimento financeiro e segregador. Os blocos passaram a ser parte de um negócio onde o folião local começou a ser desprezado, perdendo seu espaço em favor dos que vinham de outros centros mais afortunados ou trazendo moeda estrangeira. Os trios elétricos, nascidos para o povo ir atrás, foram cercados de corda e só passaria a desfrutá-los quem pagasse caro por um pedaço de pano chamado ironicamente de “fantasia”. Assisti a blocos nascidos na cidade baixa, criado por jovens de classe média baixa, segregando e selecionando pessoas pela sua posição social e aparência. Passamos de foliões a cordeiros. Não achando suficiente, criaram os camarotes espremendo o que sobrou da população nativa entre a corda e estes suntuosos estabelecimentos de lazer. O povo levado a reagir a esta violência passou a ser “porrado” pela polícia, que como sempre está a serviço dos poderosos. Tudo em nome do espetáculo!
Vocês haverão de dizer que existem os blocos afro, sim é verdade. Estes desfilam quando não há mais holofotes, depois que as estrelas já passaram saudando os governantes, anunciantes e representantes da mídia. Depois que os trios potentes, estridentes, luxuosos em recursos tecnológicos, já desfilou aquilo que convém ser mostrado... Tudo asséptico, esbranquiçado e politicamente correto. E eu desgostando do carnaval...
Mas iniciei este texto afirmando que este ano vou sentir saudade do carnaval. Vou desfiar algumas razões. Primeiro, na quarta-feira a Barra estava tomada de bandinhas de grupos espontâneos brincando e promovendo o verdadeiro carnaval folião, onde pessoas dispostas a brincar e festejar se divertiam na mais completa falta de padronização, sem horário, sem hits, nem grito de ordem e ninguém almejando auferir lucros da alegria alheia. Até o grupo cuja ideia era só concentrar, saiu e ganhou as ruas. E lá fui eu com eles. Pessoas de todas as idades e etnias divertindo-se, nenhuma confusão. Na quinta-feira, fui ver o bloco Os Mascarados e me surpreendi com a riqueza das fantasias, descontração, alegria e recuperação da criatividade dos foliões. A corda não comportou tanta inventividade e tenho certeza que no próximo ano não haverá corda, rememorando os bons tempos do Jacu, mencionado antes. Fiquei contagiado pela felicidade das pessoas e a alegria da cantora, que embora midiática, é quem tem a cara mais autêntica do povo baiano.
Para a sexta-feira, eu reservo um parágrafo especial. Em 2000, fui apresentado a O Povo Pediu por um amigo-irmão, naquele ano acompanhei à distância e só no ano seguinte passei a integrar o grupo. Levei meu cavaquinho e fui muito bem recebido. O Povo Pediu tinha tudo que eu entendia de ser folião, estavam todos ali por querer estar, com exceção da camisa nada mais era padronizado, tudo transcorria dentro de uma anarquia positiva e benéfica. Senti-me folião outra vez. Desde então, este passou a ser o meu carnaval. Fiz amigos maravilhosos. Construí laços muito saudáveis. Recebi gestos de afetos imensuráveis. Também divergimos, trocamos farpas, reatamos, mas sempre juntos partilhando do ideal de fazer o carnaval que sai dentro das pessoas. Há dois anos abolimos as camisas padronizadas e optamos em escolher uma padronagem de tecido a partir do qual cada um faz a fantasia ao seu bel prazer como, os mais antigos foliões contam, era no início. Não posso afirmar que foi isso, mas o certo é que se estabeleceu uma nova sinergia que culminou neste ano com um dos nossos melhores carnavais. Cantamos, sorrimos, abraçamos, cultuamos o Deus da folia. Nem a chuva, nem o apagão promovido no Pelourinho a partir de uma hora da manhã, certamente para economizar energia elétrica para os grandes circuitos, ofuscou nosso brilho, nossa felicidade e nossa alegria. Mostramos que ainda é possível viver os grandes carnavais.
Após esta culminância da festa de Momo, ainda tive o privilégio de, no domingo, seguir o trio alternativo da Secretaria da Cultura trazendo três excelentes cantoras, Cláudia Cunha, Manuela Rodrigues e Sandra Simões que desfilaram um repertório muito rico de letras, melodias e ideias com suas belas vozes. Seguindo este trio, tinham umas quinze pessoas, todas felizes e sabendo por que estavam ali e certamente sentindo-se privilegiadas com eu. Não lembro quando segui um trio por toda a extensão do circuito carnavalesco. Surpreendentemente, duas garotas de aproximadamente dezoito anos, que pareciam não ser daqui da cidade, pois não tinha o jeito pasteurizado dos cosmopolitas, seguiram também até o fim e sorriam como sem entender o que estavam fazendo ali, mas achando tudo muito bom. Um senhor solitário e simpático de uns setenta anos sambava ao som de “comigo ninguém pode” com se celebrasse a existência. Em certo ponto do percurso, me ofereceu uma cerveja e disse: Carnaval é isso! Parecia que todos estavam movidos por um mesmo sentimento e cumplicidade, as cantoras, os músicos, a produtora, a fotógrafa, nós foliões. Recebi até convite para subir ao trio, mas eu queria mesmo era me sentir no chão da minha cidade. Cidadão-folião. Fui até a dispersão... Meu carnaval estava completo.
Era o reviver de um amor antigo cujo prazer do beijo permanecera inalterado.