quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

QUANDO BATE UMA SAUDADE!




















Há anos que não conseguia sentir saudades de um carnaval. Desde que me entendo por carnavalesco, só me abstive de participar do carnaval num ano em que um amigo querido, do fim da adolescência, faleceu e eu mais seis amigos pactuamos que não brincaríamos naquele ano. Fomos pra Ilha de Vera Cruz. Eu com o coração dividido entre a palavra empenhada e o desejo de brincar, lembro-me que quando não aguentei mais, os convenci a retornar e ainda aproveitei o que me foi possível daquele “último dia”. Vale lembrar que até meados dos anos 90, o carnaval acabava na terça-feira, mais tardar às seis horas da matina da quarta quando as igrejas começam a badalar os seus sinos anunciando a Quaresma e os trios da Praça Castro Alves batiam em retirada. Naquele tempo éramos todos, pelo menos os carnavalescos, católicos praticantes ou não, mas respeitávamos os ditames da igreja católica. Isto me lembrou um fato interessante da minha infância, única vez em que apanhei da minha avó materna, quando numa manhã de quarta-feira de Cinzas, eu insistia em usar uma máscara de papelão, em total desrespeito aos valores de uma avó amorosa e que me enchia de vontades, mas que não admitia que ninguém tripudiasse sua crença. Não deu outra: caí no "sarrafo".

Ao longo deste tempo, eu assisti o nascimento dos blocos afro, a decadência dos blocos de índios, o surgimento do macacão e depois do abadá, o fim da mortalha e do Bloco do Jacu, para mim a manifestação mais legítima que existiu no carnaval da minha mocidade: “Ele não tem corda por que tem coração, cabe todo mundo pra brincar no seu cordão (...)”. Ah! Jacu...

Em 1992, não havia ainda carnaval na Barra. Naquele domingo, eu e mais alguns amigos armamos uma brincadeira e ficamos subindo e descendo do Farol para o Cristo e vice-versa, cantando sambas e marchinhas antigas e arrastando o pessoal que fez a opção de não ir ao centro da cidade. Neste mesmo dia, apareceu um fusca velho com umas caixas de som em cima e uns caras com uns timbaus tocando e cantando. Como não tínhamos como competir, nós ficamos alternando, quando os caras subiam a gente descia, até que ficou insustentável e escolhemos um bar numa rua entre a Marques de Leão e Afonso Celso e ficamos brincando até cansarmos. No ano seguinte não saímos mais, pois estava instituído o carnaval da Barra. Quanto aos caras dos timbaus, já começavam a ganhar notoriedade, transformando-se num movimento musical que viria a ganhar o Brasil e posteriormente o mundo.

No meado dos anos 90, começaram os primeiros sinais de que o carnaval espontâneo não mais teria vez. Os empresários descobriram o veio comercial desta manifestação, as emissoras de televisão idem e começaram a forjar seus ícones, privilegiados e milionários (são eles que ganham muito para mandar dar a volta no trio, mandar bater palminhas, sair do chão e beijar na boca). Começava o investimento financeiro e segregador. Os blocos passaram a ser parte de um negócio onde o folião local começou a ser desprezado, perdendo seu espaço em favor dos que vinham de outros centros mais afortunados ou trazendo moeda estrangeira. Os trios elétricos, nascidos para o povo ir atrás, foram cercados de corda e só passaria a desfrutá-los quem pagasse caro por um pedaço de pano chamado ironicamente de “fantasia”. Assisti a blocos nascidos na cidade baixa, criado por jovens de classe média baixa, segregando e selecionando pessoas pela sua posição social e aparência. Passamos de foliões a cordeiros. Não achando suficiente, criaram os camarotes espremendo o que sobrou da população nativa entre a corda e estes suntuosos estabelecimentos de lazer. O povo levado a reagir a esta violência passou a ser “porrado” pela polícia, que como sempre está a serviço dos poderosos. Tudo em nome do espetáculo!

Vocês haverão de dizer que existem os blocos afro, sim é verdade. Estes desfilam quando não há mais holofotes, depois que as estrelas já passaram saudando os governantes, anunciantes e representantes da mídia. Depois que os trios potentes, estridentes, luxuosos em recursos tecnológicos, já desfilou aquilo que convém ser mostrado... Tudo asséptico, esbranquiçado e politicamente correto. E eu desgostando do carnaval...

Mas iniciei este texto afirmando que este ano vou sentir saudade do carnaval. Vou desfiar algumas razões. Primeiro, na quarta-feira a Barra estava tomada de bandinhas de grupos espontâneos brincando e promovendo o verdadeiro carnaval folião, onde pessoas dispostas a brincar e festejar se divertiam na mais completa falta de padronização, sem horário, sem hits, nem grito de ordem e ninguém almejando auferir lucros da alegria alheia. Até o grupo cuja ideia era só concentrar, saiu e ganhou as ruas. E lá fui eu com eles. Pessoas de todas as idades e etnias divertindo-se, nenhuma confusão. Na quinta-feira, fui ver o bloco Os Mascarados e me surpreendi com a riqueza das fantasias, descontração, alegria e recuperação da criatividade dos foliões. A corda não comportou tanta inventividade e tenho certeza que no próximo ano não haverá corda, rememorando os bons tempos do Jacu, mencionado antes. Fiquei contagiado pela felicidade das pessoas e a alegria da cantora, que embora midiática, é quem tem a cara mais autêntica do povo baiano.

Para a sexta-feira, eu reservo um parágrafo especial. Em 2000, fui apresentado a O Povo Pediu por um amigo-irmão, naquele ano acompanhei à distância e só no ano seguinte passei a integrar o grupo. Levei meu cavaquinho e fui muito bem recebido. O Povo Pediu tinha tudo que eu entendia de ser folião, estavam todos ali por querer estar, com exceção da camisa nada mais era padronizado, tudo transcorria dentro de uma anarquia positiva e benéfica. Senti-me folião outra vez. Desde então, este passou a ser o meu carnaval. Fiz amigos maravilhosos. Construí laços muito saudáveis. Recebi gestos de afetos imensuráveis. Também divergimos, trocamos farpas, reatamos, mas sempre juntos partilhando do ideal de fazer o carnaval que sai dentro das pessoas. Há dois anos abolimos as camisas padronizadas e optamos em escolher uma padronagem de tecido a partir do qual cada um faz a fantasia ao seu bel prazer como, os mais antigos foliões contam, era no início. Não posso afirmar que foi isso, mas o certo é que se estabeleceu uma nova sinergia que culminou neste ano com um dos nossos melhores carnavais. Cantamos, sorrimos, abraçamos, cultuamos o Deus da folia. Nem a chuva, nem o apagão promovido no Pelourinho a partir de uma hora da manhã, certamente para economizar energia elétrica para os grandes circuitos, ofuscou nosso brilho, nossa felicidade e nossa alegria. Mostramos que ainda é possível viver os grandes carnavais.
Após esta culminância da festa de Momo, ainda tive o privilégio de, no domingo, seguir o trio alternativo da Secretaria da Cultura trazendo três excelentes cantoras, Cláudia Cunha, Manuela Rodrigues e Sandra Simões que desfilaram um repertório muito rico de letras, melodias e ideias com suas belas vozes. Seguindo este trio, tinham umas quinze pessoas, todas felizes e sabendo por que estavam ali e certamente sentindo-se privilegiadas com eu. Não lembro quando segui um trio por toda a extensão do circuito carnavalesco. Surpreendentemente, duas garotas de aproximadamente dezoito anos, que pareciam não ser daqui da cidade, pois não tinha o jeito pasteurizado dos cosmopolitas, seguiram também até o fim e sorriam como sem entender o que estavam fazendo ali, mas achando tudo muito bom. Um senhor solitário e simpático de uns setenta anos sambava ao som de “comigo ninguém pode” com se celebrasse a existência. Em certo ponto do percurso, me ofereceu uma cerveja e disse: Carnaval é isso! Parecia que todos estavam movidos por um mesmo sentimento e cumplicidade, as cantoras, os músicos, a produtora, a fotógrafa, nós foliões. Recebi até convite para subir ao trio, mas eu queria mesmo era me sentir no chão da minha cidade. Cidadão-folião. Fui até a dispersão... Meu carnaval estava completo.
Era o reviver de um amor antigo cujo prazer do beijo permanecera inalterado.

13 comentários:

Claudia Cunha disse...

Hafif, que maravilha! Amei ler seu texto...vc sabe que não fui foliã desse melhor período, mas suas reminiscências ecoaram em mim por tudo que já ouvi ou li e pelo que vejo hoje. Que lindo o que vc escreveu sobre nosso trio de poucos, mas em comunhão na brincadeira! Vamos tomar as ruas e fazer o carnaval voltar a ter outro sentido...Beijo grande, querido.

Unknown disse...

Amigo,amei o texto. É por essa magia que acredito no poder de transformar sonhos em realidade.Bjos.

Anônimo disse...

Meu querido tio, que fabulas palavras são essas? Um texto maravilhoso com histórias irreverentes!! O senhor não sabe o quanto queria poder ter nascido nessa época e ter curtido esse carnaval popular, e, certamente mais verdadeiro e emocionante, onde cordas não era sinônimo de exclusão socio-econômica, onde os foliões faziam sua própria festa e contagiava a tudo e a todos. Vejo que seu coração se enternece ao reviver momentos dos antigos carnavais, cujo significado era a diversão igualitária a todos!
Engraçado que, nesse ano tive um olhar social maior que das outras vezes, talvez pela maturidade estar se fortificando, não sei...
Mas observando os blocos, cujo valor dos abadás são os mais altos, não participara um negro, e vendo as cordas e a pipoca, essa era a grande maioria, cresceu um sentimento de indignação tão grande em mim, que por um momento tive raiva da festa que eu mais amo... "Apartheid disfraçado todo dia..." como diz Adão Negro. Infelizmente em meio a tanta beleza há muita hipocrisia, como: "Criança não trabalha, brinca", (uma campanha do governo ou prefeitura não me lembro), enquanto lia essa frase só via crianças catando latinha para sobreviver... O cirucuito Dodô é o lugar mais "elitizado", e mais seletivo, digamos assim, enquanto o Campo grande, está sendo deixado de lado... O carnaval é a mais bela festa do mundo, porém não devemos fechar os olhos diante de tanta injustiça. Enfim, Amei o seu texto e quero sempre pdoer lê-los!!

Um beijão da Sobrinha que te admira muito, e fica com Deus!!

Syl Vieira disse...

Bonito,

Quanta inspiração e riqueza de detalhes. Vejo aqui o registro de um folião apaixonado pelo carnaval. As mudanças na estrutura da festa são muitas e o saudosismo surge para inspirar esta criação. O texto está magnífico. Preciso. Autentico.
Ahhhhhhh! Foi interessante presenciar que a avenida ficou pequena para sua alegria carnavalesca. Joelho doente? O que é isso mesmo? E que venha 2010... kkkk beijossssss

Marcos Oliveira disse...

Quando o trio Três na Folia passou lembrei do carnaval que saimos com o Grupo Jeitinho Brasileiro Pulando a Cerca.Na época Jorge Zarat parou a música que estava tocando perguntou o tom que estavamos e comecou a tocar.

Unknown disse...

Impressionante a sua capacidade de dizer o que certamente muitas pessoas queriam dizer sobre esse carnaval produzidoe que como sabemos é para poucos. Estive observando o carnavla aqui de Pernambuco e por enquanto preza por ser popular e democrático. Nunca brinquei carnaval, nunca fui foliã. Mas posso imaginar o que sente quem brincava em outros tempos e que compara com o que existe hoje. Melhor ainda é te ver feliz e sorrindo. E ainda vendo teu sonho voltar a ser realidade. Beijoooooooo

Roselle Matos disse...

Obrigada, meu mais recente amigo, pelo presente. Texto magnífico muito bem redigido e repleto de pura emoçao. É por esses motivos que precisamos lutar pelo O Povo Pediu. Grande beijo

Fernando Bichara - Massoterapia e Acupuntura Auricular disse...

Amigo, há muito não leio uma crônica tão perfeita, tão bem redigida e tão coerente e profunda quanto essa. Parabéns. Me fez relembrar minha juventude, minha adolescência, quando pulava atrás dos trios elétricos do então "verdadeiro carnaval da Bahia". "Atrás do trio-elétrico só não vai quem já morreu..." Surgiu, então o Axé... meu carnaval foi sepultado sem nem mesmo ter sido velado. Morte súbita. Logo em seguida me mudei para São Paulo, aonde permaneci por 10 anos sem jamais ter retornado ao carnaval da Bahia. Vinha visitar minha família a cada três meses, mas nunca no Carnaval. Em abril de 2003 voltei definitivamente a Salvador e, desde então, viajo no período do carnaval(?). Este ano decidi ficar recluso em minha casa. Parabéns, amigão. Parabéns.

Sunshine School disse...

Hafif, prazer em conhece-lo! Uma geração nos separa, mas a música nos aproxima ou o velho espírito carnavalesco... e até um pouquinho mais... nasci também no Manoel Vitorino e embora libriana no sol tenho sagitário por ascendente... Prazer em conhece-lo, repito; adorei a sua crônica e fiquei feliz que você houvesse adicionado a minha no seu blog (como cheguei até voce, pergunto). Que bom,amigo novo, que não apenas a sua crônica mas também o seu carnaval tenha um Happy end... tão diverso do meu... Seguirei o seu blog e o seu bloco da próxima vez..
Ângela Chaves,
angelachaves2006@ig.com.br
http://www.myspace.com/angelachavesunshine

Nara Santos disse...

Meu caro amigo, que belo relato do que é carnaval. Obrigada pela esperança de que melhores carnavais virão não por iniciativas burocraticas, mas pelo sentimento que ainda existe. Me chamou a atenção o seu companheiro folião sambista compartilhando a cerveja, o respeito etico pelos costumes da nossa cidade e porque não a oportunidade de conhecer sensações novas das meninas que possivelmente eram de fora da cidade. Correr atrás de um trio. Em seu texto não há saudosismo, mas uma visão real que as coisas mudam. E como isso é uma verdade espero que a nossa criatividade nos leve a curtir o carnaval que resiste dentro de nós.
Parabéns... Pela elegância do texto.
bjs

Iracema disse...

Olá, querido!
Assim te recordo, calmamente. Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Lembrei imediatamente de ti ao ler este trecho do livro Contos de Eva Luna. Por que será? (rs)
Adorei pegar carona nas tuas palavras e rememorar. Eu que já deixei de ser foliã há tantos anos, fiquei torcendo para que o carnaval volte a ter a magia da desordem despudorada que pulsava unida e frenética em busca do prazer, da catarse. Éramos todos sujeitos de uma indescritível felicidade pessoal e coletiva. Ser feliz era uma realidade possível, quase palpável em cada um dos foliões. Ah! Foi uma delícia relembrar...
Cordas? Só se forem para amarrar alegrias. Exclusão? Só da tristeza e do preconceito.
Que sonho são! Adorei seu texto, meu amigo, do FIM ao início.

Beijos, apaixonado folião...

Serjão disse...

"E eu menos estrangeiro no lugar que no momento, sigo mais sozinho caminhando contra vento..."

Meu compadre é sempre um prazer ler os seus textos,cada vez mais polidos, mais leves e mais belos, um convite a reflexão. Este então fez me senti parte dessas deliciosas histórias (e efetivamente fiz parte de algumas delas...).
O que você fala me toca profundamente, por que eu também vivo momentos de desesperança em busca do carnaval perdido, não desisto por puro exercício de resistência.E você retrata muito bem isso com a autoridade de quem viveu e o senso crítico necessário a quem nunca entregará os pontos.
Gostei muito da referência ao senhor anônimo e das meninas não cosmopolitas, comungo deste prazer de perceber as pessoas no carnaval, o brilho nos olhos, a leveza da dança sem importar-se com o julgamento, o sorriso receptivo para o desconhecido e o prazer do Reencontro.
Esta é a química do carnaval que torna cada um ator e espectador simultanemente. Se o carnaval continuar tendo os que são vistos de um lado e os que vêem de outro, pode ser chamado de qualquer coisa menos de carnaval.

Rebeca Brito disse...

Oi Sogrinho!
Demorei, mas estou aqui. Como tinha lhe dito pessoalmente, muito bom o texto e me levou a conhecer uma história do carnaval de Salvador que não conhecia. Muito contagiante suas palavras, e apesar de não ter vivido essa fase do carnaval sua maneira de expressar essa saudade me fez imaginar o quanto o carnaval era uma festa de todos e para todos...
Beijos.