A semana passada foi marcada pelo trágico desaparecimento, deste plano, de dois ícones da minha adolescência. O pop star Michael Jackson e a belíssima, no ponto de vista do menino, atriz Farrah Fawcett. O primeiro dispensa apresentações e continua, passada uma semana, sendo o grande mote da mídia mundial e ainda será por algum tempo. Como todo adolescente dos 70’s, eu não era diferente, amava-o num misto de admiração e inveja. Todos os meninos da minha geração, negros ou não, nem que seja pelo um menos uma vez, nutriram este sentimento. Meu fascínio pelo artista perdura agora e perdurará por todo o tempo. Poucos encarnaram a figura de um astro como ele. Talentoso, inteligente, criativo, completo. Como ninguém é perfeito, a figura do cidadão, que para nós, principalmente os negros, poderia ser uma legenda para muitas gerações, ficou ofuscada pelo fraqueza de espírito e a renúncia à sua ancestralidade. Michael, aos olhos de muitos, renegou, transgrediu, subverteu os valores da sua raça na busca de se sentir e ser aceito. Isto pode ter lhe custado um alto preço. Não o julgo, consequentemente não o culpo. Acho que em algum nível, a nossa geração, onde uma certa quantidade de negros passou a ascender socialmente, este medo de não ser aceito era algo muito marcado. Eu cansei de ouvir de parentes: nós somos pobres, feios e pretos temos que procurar o nosso lugar. Empreender, Vencer, Poder, Brilhar, NÃO faziam parte do nosso vocabulário.Crescíamos e vivíamos, enquanto muitos morreriam, sobre o paradigma de sermos inferiores. Não posso afirmar, mas , às vezes, tive a impressão que todo este processo de desfiguração pelo qual o Michael passou, em parte, é norteado por esta abordagem. Li certa vez, que o próprio pai dele o insultava quando criança pela sua aparência, chamando-o de “feio”.
Eu, próprio, quando criança, me sentia muito incomodado com esta sensação de inferioridade. Na minha classe tinha um garoto branco de classe média alta, cuja performance escolar e comportamental não eram ruins, mas não chegavam perto das minhas, porém era ele paparicado por todos: professores, auxiliares de disciplina, coordenadora, porteiro.Sem sombra de dúvidas, houve momentos que desejei estar no lugar dele.
É nesta parte da “história” que entra Farrah Fawcett. Farrah representava, na minha adolescência, meu melhor referencial de mulher: branca, charmosa, esguia, loira, cabelos lisos, dentes perfeitos, olhos verde-azulados. Ela fazia parte de Os Anjos de Charlie (As Panteras). Não saberia recordar uma história da série, mas posso assegurar que não perdia um episódio para ver Jill Monroe, sua personagem, em ação. A mim, bastava ver aquela mulher quase deusa, anjo mesmo, que me encantava e enchia minha cabeça de fantasias...Nesta época, inconscientemente, tinha uma baixíssima autoestima e só via afirmação através do meu sonho de ser rico e ter uma mulher como ela. No meu pensamento de menino de 12 para 13 anos, pobre, preto e “feio”, esta seria a chave para ser aceito socialmente quando homem adulto me tornasse: trabalharia incansavelmente, ganharia muito dinheiro e teria uma “pantera” igual àquela ao meu lado.
Coincidência, ou coisa do destino, ela ter partido no mesmo dia que Michael. Farrah, apesar de já desenganada, fez a passagem quase que despercebida, foi vitimada de uma das mais atrozes doenças, de todas que a humanidade experimenta, e ao mesmo tempo a mais democrática e justa. Uma doença que não elege idade, cor da pele, posição social, menos ainda aparência física, antes, e em geral, esta particularmente definha junto com o paciente. Pra ser sincero, já não lembrava dela, foi a trágica notícia que me trouxe à memória, já não tão eficiente, a lembrança desta fantasia. Cabível na cabeça de um menino, ficou aonde deveria ter ficado, no passado de alguém que não precisou pular etapas, foi encontrando gradativamente seu lugar e seus reais valores. Arrisco o palpite de que Michael não teve esta mesma sorte. Morreu subitamente. Viveu num mundo de fantasia, embora só lhe fosse permitido fantasiar no palco, onde, sem sombra de dúvida, foi genial e único. Na vida, não deixaram-no ser criança, logo também não conseguiu ser adulto, percebe-se que entre uma fase e outra constituiu-se o abismo. Tão ilhado no seu universo não observou se quer as mudanças do mundo. Assim como o câncer que consegue atingir a qualquer pessoa, Michael não se deu conta de que todos alcançamos também o direito à liberdade, à prosperidade, ao estrelato e a sermos nós mesmos. Alcançamos o direito cidadão de ir e vir, sem curvar a cabeça ou se transmutar. Descobrimos nossa própria beleza, reforçamos nossa identidade racial e tornamo-nos reconhecidamente agentes de mudança social.
Sim, nós podemos, Michael. Podemos muito mais. Só não poderemos preencher a lacuna que se criou com a precoce extinção do seu inigualável talento em fazer a Terra balançar, cantar e dançar.
8 comentários:
Meu caro amigo...realmente muito bom..
Abs
Meu querido amei seu texto! Como vc, também admirava esses dois demais. Ele por ser um artista completo. ela por ser excelente atriz e também na minha adolescência ter adorado as panteras. Te admiro cada dia mais! Beijooooooo
Sem dúvida, esses dois grandes artistas marcaram época e deixaram suas marcas na história de vida de várias pessoas. Infelizmente a trágica morte de M. Jackson foi causada em parte por falta de autoconhecimento, mesmo sabendo da influência negativa do seu pai na formação da sua personalidade. Não podemos perder de vista que existem milhares de Sr. Jackson neste planeta. Contudo, o nosso destino não pode ser colocado nas mãos de ninguém.
Parabéns pelo maravilhoso texto. Bjs
Sem dúvida perdemos dois icones.
Semanas antes tinha visto uma foto de Farraw de cadeira de roda sendo conduzida a exames e tive a sensação que era o fim. Acho que como mocinha sonhei muitas vezes em ser forte, sexy e participar de ações tão espetaculares realizadas pelos filmes das Panteras e da Mulher Biônica, interpretada por Lindsay Wagnerde. Michael fez parte da trilha sonora da vida de todos nós.
Vejo em Michael a representação de Peter Pan nada pode ser eterno. Temos que aprender a superar as dificuldades e as aparentes facilidades a fama é um grande risco.
O desequilibrio familiar de Michael sempre mostrou que as relações eram bem difíceis.
Desta forma só nos resta rever e lembrar com carinho os filmes e shows que eles nos proporcionaram.
bjs
Um comentário da Leitora Lucy Góes ENVIADO POR E-MAIL:
Quem não tem uma história desta para contar? “Você já é preto(a) feio(a), pobre, tem que dar exemplo, temos que procurar o nosso lugar”, mas que lugar era esse? Será que o tínhamos? Que padrão de beleza fazia parte das nossas cabeças? Qual a imagem do “bonito” que permeava os nossos sonhos se diariamente éramos chamados(as) de “feios(as)”? o ser “preto(a)” era considerado um defeito sim, “um defeito de cor” como tão bem usou Ana Maria Gonçalves para dar título ao seu belo romance.
Você trouxe uma questão que apesar de ultimamente estar tão propagada as pessoas insistem em não falar, não tocar na dor, não tocar no preconceito do qual foi vítima, as renúncias que precisaram fazer para serem aceitas, as inseguranças que tiveram que enfrentar. Penso que com Michael aconteceu assim, não me lembro dele falando sobre o racismo, sobre suas dores, seus medos, ele simplesmente foi se modificando, cada vez o reconhecia menos, só lembro da sua imagem se distanciando, gradativamente daquele jovem lindo “o ídolo” da nossa adolescência. Por diversas vezes me perguntei: Onde ficou escondido aquele Michael que conheci e que amei? Engraçado, a sensação que tenho agora é que ele já havia desaparecido há muito tempo, o meu “ídolo” já não mais existia.
CONTINUAÇÃO:O que o racismo fez com aquele rapaz? O que tem feito com tantos(as) jovens negros(as)? Distorcemos nossas percepções, nossa visão de mundo, nossa auto-imagem, ainda somos minorias no mercado de trabalho, nos cargos de maior prestígio social, no comando de organizações, sejam elas públicas ou privadas, nas universidades. Ainda precisamos de nos mascarar de “branco(a)” para sermos aceitos em alguns lugares, existem espaços que ainda não podemos ter acesso sem apresentarmos uma “senha” que pode ser uma “pantera” (como você sonhava quando adolescente) um cabelo alisado, uma “cor morena”, uma super qualificação que muitas vezes não é exigida para os não negros e ainda ouvimos: “Ái, apesar de ser negro(a) é muito inteligente/ um(a) preto(a) de alma branca/ um(a) preto(a) diferente. Como se fosse pouco ainda nos resta enfrentar a “invisibilidade” de pessoas e instituições.
Poderia relacionar dados estatísticos que comprovam todas estas questões em pauta, mas estes, nós encontramos nos jornais, livros, revistas, periódicos, na internet se quisermos pesquisar.
CONCLUSÃO:Por isso compartilho com você quando diz: ”Michael não se deu conta” só isso, penso que ele não se deu conta como nós estamos nos dando conta, hoje; estamos trazendo para o nosso “consciente”; estamos ousando falar sobre algo tão doloroso, sem sofrimento. No mais, a realidade nos tem mostrado que apesar de termos: “descoberto a nossa própria beleza”, “reforçado nossa identidade racial” e de termos nos “tornado reconhecidamente agentes de mudança social”, ainda não alcançamos o direito à liberdade, à igualdade, à prosperidade, ao estrelato e conseqüentemente o direito de “sermos nós mesmos”.
Agora, dialeticamente falando, “Nós podemos” sim, e é isto que nos tem levado a continuarmos lutando para que amanhã tudo se torne diferente e outros Michael's não precisem morrer para continuar existindo.
Boa noite!!!!
Lucy Góes
Senti fortemente a nostalgia no ar e posso imaginar as lembranças que passaram pela cabeça. Recordar é viver, mesmo que essas recordações só venham em momentos como este. Sem dúvida ele sofreu muito na infância e consequentemente tornou-se um adulto solitário e conturbado. Rico, porém infeliz. Que Deus conceda um bom lugar no Reino da Glória aos dois.
beijão, tio querido!
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